Enzimas digestivas para o glúten: funciona mesmo?

Com forte apelo de marketing, chegam ao Brasil medicamentos destinados a “intolerantes ao glúten”. Um deles é o Glutezym, fabricado pela Maxinutri, empresa brasileira dedicada à produção de shakes, chás, sopas solúveis e suplementos alimentares. Na página oficial da empresa no Instagram, que conta mais de 170 mil seguidores, o novo produto é apresentado por diversas influenciadoras digitais, com a presença destacada da atriz Grazi Massafera, garota propaganda da marca. Massafera, na sua própria página na mesma rede social, fez um vídeo onde apresenta o Glutezyn. Ela diz que “quase dois milhões de brasileiros sentem desconforto ao ingerir glúten, e por isso o tiram da alimentação”. Em seguida apresenta o “produto brasileiro para ‘intolerantes’ ao glúten”.  

Com igual destaque, desta vez nas páginas digitais da Veja Saúde, a Tolerase G, da marca DSM, é apresentada para a mesma finalidade. A matéria informa que o glúten, presente no trigo, centeio e cevada, é uma proteína formada por vários aminoácidos. Dentre esses está a prolina, molécula de difícil digestão e, por isso, associada a incômodos como dor abdominal e estufamento em pessoas sensíveis e intolerantes ao glúten. A sugestão é ingerir o produto recém chegado ao mercado antes de refeições que contenham pães e massas, pois “a Tolerase G atua na quebra da prolina”.

Cabe ressaltar que nas matérias e anúncios de ambos os produtos há a advertência de que eles não servem para celíacos. 

O gastroenterologista e nutrólogo Fernando Valério comenta que há anos aparecem produtos que prometem ‘digerir’ o glúten. Agora chegam ao mercado novas versões, com grande apelo de marketing. Antes de falar do medicamento propriamente, ele alerta que a questão do glúten deve ser uma preocupação primordial para pessoas que portam alguma desordem relacionada ao glúten, como celíacos, sensíveis ao glúten não celíacos e alérgicos.

O médico explica que o glúten é uma proteína formada por partes; e uma delas se chama gliadina. A gliadina é indigerível por qualquer ser humano. Ele alerta que as enzimas comercializadas no momento também são incapazes de digeri-la. A questão é que a gliadina é exatamente a parte tóxica e imunogênica (que gera respostas inflamatórias). Ou seja, a tal enzima não age exatamente onde há a necessidade; a parte nociva do glúten continua intacta. 

Valério observa ainda que a enzima oferecida no mercado não tem qualquer função para as pessoas com desordens relacionadas ao glúten. E, ao mesmo tempo, não é necessária para as que não sofrem com essas questões, visto que estudos não conseguem justificar a exclusão do glúten nesse grupo de pessoas saudáveis. Contudo, a esperança de um medicamento com essa função está bem viva. Ele comenta que, no momento, há um medicamento em estudo chamado latiglutenase, que vem se mostrando capaz de digerir a gliadina e neutralizar a toxicidade do glúten. Mas trata-se de um medicamento em estudo, que obviamente não está à venda em farmácias. 

Autora de vários livros, dois deles dedicados à doença celíaca, a médica Lorete Kotze dedica-se ao tema há mais de cinco décadas. É membro do American College of Gastroenterology, criou grupos de estudo e linhas de pesquisa nos anos em que lecionou na Universidade Federal do Paraná, e foi uma das fundadoras da Acelpar (Associação dos Celíacos do Paraná) em 1998, uma das mais atuantes entidades do setor. Ela diz desconhecer trabalhos científicos que comprovem a eficácia de medicações destinadas a cortar os efeitos do glúten; e vê com ressalvas os novos produtos que chegam ao mercado com esse propósito. 

Sobre a expressão “intolerantes ao glúten”, utilizada nas matérias referidas, cumpre observar não é mais usada no Brasil pelos movimentos de celíacos e pela comunidade científica. Raquel Benatti, celíaca e autora do Portal Rio Sem Glúten, com bastante atuação nas entidades do setor, explica que em 2011, numa reunião organizada por pesquisadores de vários países foi produzido um documento conhecido mundialmente como Consenso de Oslo. Publicado em 2012, ele traz a solicitação de não mais usar o termo ‘intolerância ao glúten’, pela confusão que causava entre celíacos, sensíveis ao glúten não celíacos e entre profissionais de saúde. Após a publicação, imediatamente a Fenacelbra (Federação dos Celíacos do Brasil), através das Acelbras, incentivou que a expressão fosse evitada, o mesmo ocorrendo com os grupos virtuais de celíacos.

 

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